- Agora é a minha vez!
O olhar do pequeno e magro menino estava fixo no meio do rio. A garotada aguardava com muita atenção a performance do coelega.
Lembro que um deles arriscou um
leve incentivo..
- Vai Roberto, agora é você vamos ver
se consegue!
Tinha de atravessar aquele rio e só
contava com um pedaço de bambú de
pouco mais de dois metros.
Tomar impulso, fixá-lo no meio do rio
e alcançar altura impulsionando com o
corpo para atravessar.
Era um risco e poderia tornar-se um
naufrágio...
VIAGEM DE INFÂNCIA
Era uma tarde ensolarada em Votorantim e às margens do Rio encontrava-se uma molecada atenta. Na tentativa anterior o impulso de Quinho não foi suficiente, o bambú foi parando no meio do percurso e o menino de Votorantim não resistiu e acabou largando o bambú, despencando do alto, caindo no rio, para delírio, risos, aplausos e assovios da molecada.
Mas agora eu estavva atento e tudo ocorreu em poucos instantes porque já me encontrava totalmente decidido a atravessar o rio. Tomei distância, apressei os passos, próximo da margem finquei o bambú bem no meio do rio, o impulso foi bom, quase parando na metade, porém um leve impulso com o corpo possibilitou a continuidade da trajetória lançando-me ao outro lado da margem. Aplausos, assovios, gritaria geral...
O pequeno rio passava nos fundos das casas do lado direito da rua Heitor Avino no bairro da Chave em Votorantim. Deveria ter na época, há mais de trinta e cinco anos, pouco mais de quatro metros de largura. Era raso e a poluição ainda era mínima, a molecada não deixava por menos e inventava brincadeira. No calor, durante as férias escolares, além de partidas de futebol a garotada inventava o salto com bambú para atravessar o rio.
Eu participava dessas brincadeiras enquanto meu avô tirava o sono da tarde depois do almoço junto com meu tio caçula, o Carlinhos.
Esses momentos de infância foram possíveis porque Roberto passava temporada de um mês ou mais na casa de seu avô português, seu Antonio Pinto. Figura carismática, moreno pouco escuro, alto, forte e um pouco barrigudo. Foi o primeiro impulsionador da torre de alto falante que ficava do outro lado da margem e transmitia para a cidade, era a rádio local. Ele havia doado praticamente todos os seus discos para contribuir na programação musical. Era admirado na cidade e principalmente pelos seus filhos: Manoel, Americo, Antonio, Alberto, Gastão, Elvira, Regina, Carlinhos, sua sempre atenciosa esposa e carinhosa avó dona Maria Justina e a Delita que completava a família.
Quando ele falava à mesa, todos prestavam atenção, lembro que acompanhava cada detalhe de suas histórias, tinha até uma de terror: foi quando seu Antonio Pinto trabalhou uma temporada como vigilante noturno na vila São Francisco para indústria Votorantim, substituindo outro vigilante que havia saído de férias.
- Qualquer pessoa que se aproximasse da vila de casas no trecho vigiado tinha que se identificar, principalmente tarde da noite quando todos já dormiam. Eis que bem adiante avisto um homem de capa escura e com chapéu vindo em minha direção e eu gritei: Alto lá quem vem!!
Com os pelos dos braços arrepiados prestava atenção firme e os olhos fixos na narração de meu avô..
- E mesmo que gritasse por duas vezes, a figura seguia passo a passo na escuridão, vindo em minha direção, então decidi dar o último alerta.. Alto lá se não eu atiro!! Mas a figura não parava de caminhar e também não se identificava. Engatilhei o revólver e empunhei em sua direção alertando, alto lá, diga lá quem vem! E a figura ou homem com capa e chapéu aproximava-se cada vez mais.. Alto lá, se não eu atiro. Nesse momento minha mão que empunhava o revólver virou-se para minha direção e não conseguia voltá-la a posição anterior.
O homem de capa chegou mais próximo ainda e sem que pudesse ver seu rosto na escuridão, soltou fogo pelos olhos, boca, ouvido e passou por mim. Só então minha mão endireitou com o revólver.
Seu Antonio foi procurar a vizinhança para relatar o ocorrido.. Prometeram-lhe apoio:
- Qualquer coisa é só apitar e chamar que a gente vem para ajudar.
- Mas seu Antonio apenas cumpriu os dias que restavam para cobrir as férias de seu colega e logo saiu desta atividade..
Era mesmo de arrepiar, tinha outras histórias suaves, quer dizer, mais ou menos.
Lembro também de seu momento de leitura, quando na varanda nos fundos da casa sentado numa cadeira de frente para o quintal apoiado numa mesa seu Antonio usando óculos de aro fino lia o jornal "O Cruzeiro" de Sorocaba e ouvia a rádio Cacique que chamava carinhosamente de rádio Cebola. As folhas do abacateiro ficavam bem adiante de seu rosto balançando ao toque do vento. Posso imaginá-lo com o reflexo dos raios de sol passando pelas folhas do abacateiro. Na sua casa seu Antonio, na rua Heitor Avino, 198, no bairro da Chave em Votorantim. Faz muito tempo.
Gostaria de aproveitar a oportunidade e me desculpar de algumas travessuras, mas acho que você também as apreciava..
Também recordo que adiante da paisagem pela varanda dava para avistar a estrada que levava a Santa Helena, Piedade... lembro do barulho dos caminhões, aqueles FNM que de longe se ouvia TACATACATACA... enquanto avisto sua figura entre as folhas do abacateiro aproveito um instante para passear um pouco pelo quintal e depois passar por uma parreira de uvas passo no corredor por duas portas chegando a divisão de tábuas no fundo do quintal, lembro que subia numa delas junto a árvore e permanecia bastante tempo observando o pequeno rio ao fundo e o barulho de alguns teares de uma pequena tecelagem do outro lado do rio..
Quando voltava para casa depois que meu pai manobrava o carro via uma lágrima descendo de seu rosto, seu Antonio. Apoiado na janela da sala na frente de casa você acompanhava despedindo-se de mim. Eu acenava, e você ficava olhando..
Posso imaginar o trajeto de volta e em cima da pequena ponte paro e avisto a varanda de sua casa e entre as folhas do pé de abacate consigo avistá-lo como se estivesse ao lado de dona Tina, o Gastão estava próximo e de todos guardo saudades, e cada um já partiu desta.
Ao longo da avenida 31 de março de frente para o sol sinto o vento tocando meu rosto, um friosinho lembra uma lágrima de saudade. No caminho de volta lembro-me que preciso abraçar meu pai, que também sou papai, meus filhos me aguardam e quero abraçar a todos.
E um forte abraço a você também seu Antonio Pinto.
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